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 “Canetadas” versus justiça econômica

Por Aurélio Brandão 

Ao realizarmos a defesa de uma atualização do marco regulatório do mercado brasileiro de seguros, postulamos a atualização da legislação às reais condições do mercado de capitais, tanto em sua dimensão nacional quanto internacional. Em diversas oportunidades, temos enfatizado que o mercado de capitais brasileiro evoluiu, desde a década de 1970, de um nicho econômico oligopolizado por algumas poucas iniciativas para um cenário de expansão do crédito que democratizou o acesso a bens de consumo duráveis e bens de produção.

Entretanto, a despeito dessa realidade evidente em termos econômicos, de vida real e palpável, o mercado de seguros brasileiro é regido por um marco regulatório datado de antes desse novo cenário: trata-se do Decreto-Lei (DL) nº 73, de 1966. Esse dispositivo, no artigo 24, coloca que somente as seguradoras estabelecidas sob a forma de sociedades anônimas e cooperativas podem operar no ramo de proteção patrimonial, restringindo as sociedades cooperativas a operar unicamente em seguros agrícolas, de saúde e de acidentes do trabalho. Em mais de 50 anos desse decreto em vigor, nenhuma seguradora cooperativa foi regulamentada pela Susep (Superintendência de Seguros Privados).

Com a evolução do mercado de capitais e um de seus principais resultados, a expansão do crédito e do acesso ao financiamento de médio e longo prazos, graças às medidas do governo em vigor, indivíduos de menor renda passaram a ter acesso a bens de consumo duráveis e a bens de produção, cujos alto valor agregado requeria sua proteção diante de acidentes, furtos, roubos e outros imprevistos.

Ocorre que as condições econômicas pelas quais operam as sociedades seguradoras tornam a securitização de patrimônio inviável para esse estrato da população, não esquecendo que tal nicho, a exemplo do resto do mundo, não ultrapassa a arrecadação  per capita de 20%  do total do mercado, conforme gráfico da CNseg (Confederação Nacional das Seguradoras), atualizado em janeiro de 2018.

É o que acontece com aquele caminhoneiro que adquire seu veículo e vive do frete desse único caminhão que possui. Também é o caso do motorista de aplicativo de transporte de passageiros. Esses são apenas dois exemplos de pessoas que adquirem um bem de alto valor por meio de financiamentos via expansão do crédito, mas que não reúnem condições de pagar por um seguro tradicional. Nesse contexto, surgiram as cooperativas e associações, para atender esse nicho da população na qual os princípios do associativismo foram aplicados na atividade de segurança patrimonial.


COMPARATIVO

Fazendo um comparativo com países na américa, a exemplo da Guatemala, que é atemorizada constantemente por abalos sísmicos, erupções vulcânicas e alagamentos — riscos que nenhuma seguradora de sociedade anônima tem interesse —, a população teve que desenvolver um modelo de seguro cooperativo, que coincidentemente tem aceitação e participação de praticamente 90% da sociedade economicamente ativa daquele pais.

Entretanto, quando a evolução da economia não mais comporta a manutenção de privilégios que o conjunto da sociedade enxerga como inaceitáveis, os grupos econômicos privilegiados por uma histórica reserva de mercado utilizam a esfera política e a artimanha jurídica com vistas a manter esses privilégios. Assim, sob a batuta do deputado federal Lucas Vergílio (SD/GO), os setores ligados às sociedades seguradoras elaboraram o Projeto de Lei (PL) de nº 3139/2015, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, aguardando o parecer do relator, o deputado Vinicius Carvalho (PRB/SP), previsto para até meados de 2018.

Qualquer indivíduo dotado de bom senso poderia pensar que o PL 3139/2015 seria uma forma de atualizar o marco regulatório do mercado de seguros no Brasil, reconhecendo os avanços no mercado de capitais nacional e seus principais resultados nos últimos 40 anos. Assim, um PL coerente expandiria o leque de empreendimentos legalmente aprovados a atuar no setor de segurança patrimonial, bem como estabeleceria os parâmetros necessários à atuação de cada um. Um novo marco regulatório surgiria, com vistas a atender todas as espécies de proprietários de bens, de acordo com sua capacidade econômica e suas necessidades de proteção patrimonial em termos de escala. Assim, aquele caminhoneiro proprietário de um só veículo e a transportadora dona de uma frota de caminhões teriam possibilidades de uma justa coexistência na proteção de seus patrimônios, com serviços adaptados à dimensão diferenciada de suas necessidades.

Entretanto, o PL 3139/2015 estabelece uma direção contrária: seu itinerário tem como destino o passado distante. Ele não modifica em nada o DL 73/66. Pelo contrário: suas principais disposições tornam ainda mais rigorosas as sanções previstas para diretores e membros de associações e cooperativas que operam no setor de proteção patrimonial. Em sua exposição de motivos para o PL, o deputado Lucas Vergílio em nenhum momento apresenta argumentos econômicos razoáveis para a manutenção da reserva de mercado pelas sociedades seguradoras. Em todo o longo texto, as justificativas são as mesmas: as cooperativas não podem existir porque desafiam o caduco DL.

Em alguns momentos, o parlamentar levanta questões interessantes, e que, de fato, necessitam de resposta: uma delas é a necessidade de provisões e reservas técnicas com vistas a cobrir os sinistros que porventura sobrevierem. Ele argumenta que a lei estabelece esse tipo de obrigação às sociedades seguradoras tradicionais e infere que as cooperativas de seguros não reuniriam condições de fazer frente a essa necessidade de reservas técnicas.

Ora, afirmar isso é má-fé ou total desconhecimento do atual nível de evolução das ciências securitárias. As cooperativas possuem a reserva técnica, que se estrutura sob a forma das cotas dos cooperados. Aliás, pela forma como são estruturadas, as cooperativas oferecem a seus membros maior possibilidade de controle e fiscalização dos recursos envolvidos nesse tipo de operação. O conhecimento técnico é adquirido por meio da contratação de consultorias especializadas em cálculos atuariais, capazes de realizar trabalho de expertise técnica internacionalmente reconhecida.

Assim, defender uma pretensa incapacidade técnica em termos de captação de recursos para garantir sinistros por parte das cooperativas é prova de falta de capacidade ou pura desonestidade intelectual. De resto, a exposição de motivos do deputado Vergílio estabelece uma série de efemérides sem importância para o âmago da questão, como nomenclaturas utilizadas pelas iniciativas de caráter associativista. Se a questão da cobrança do IOF tem relevância econômica, esse debate poderia ocorrer sob a forma de um maior número de audiências públicas, nas quais os principais interessados teriam de ser ouvidos. Mas a quantidade de discussões a respeito foi ínfima. Não levou a um real amadurecimento sobre o tema. O PL 3139/2015 foi elaborado de maneira autocrática, sob a forma de uma clamorosa “canetada”.

Na verdade, toda essa discussão esconde uma profunda verdade: a de que as sociedades seguradoras não temem operações “ilegais”, ao arrepio de uma lei de mais de meio século. O que esse oligopólio mais teme é a possibilidade de expansão da oferta no mercado de seguros e a necessidade de atuar com mais eficiência, oferecendo um melhor produto e a preços menores. Se esse é o debate principal e se ele deveria ser conduzido de forma honesta, seus únicos participantes verdadeiros têm surgido do lado das cooperativas.

Mais de 74 países pelo mundo ofertam à população economicamente ativa a oportunidade de proteger seus bens de consumo duráveis e de produção de alto valor agregado. Neles, existe mais de um modelo de proteção patrimonial, oriundos das sociedades anônimas ou mútuas, compostas por cooperativas e associações, que têm uma estabilidade econômica estruturada e que garantem ao povo a hereditariedade dos patrimônios.