Além da eletrificação, combustíveis sintéticos e biocombustíveis estão em pauta para daqui a 60 anos
Por AutoEsporte
Dia 21 de outubro de 2015. Essa é a icônica data que o relógio do DeLorean marca no filme “De Volta para o Futuro 2”. No longa, o carro futurista é abastecido pelo Dr. Brown com materiais orgânicos, como restos de alimentos que, em fusão de energia, faziam o carro funcionar. Agora estamos em 2024 e ainda não chegamos nesse ponto, mas houve muita evolução na discussão sobre os combustíveis do futuro.
A transição energética se intensificou e os veículos eletrificados se tornaram ponto de destaque, sendo posicionados como o futuro da indústria automotiva. Entretanto, de pouco tempo para cá, marcas e governos anunciam alternativas para manter os motores a combustão e seus combustíveis em pauta, mas mais eficientes e sustentáveis. Afinal, quais são as expectativas para o mercado de combustíveis nos próximos 60 anos?
Antes, vale um contexto. Até o final de 2023, ao menos duas dezenas de fabricantes cravaram um prazo limite para encerrar a produção de veículos a combustão. A maioria, aliás, colocou 2030 como meta para lançar apenas modelos elétricos com baterias (BEV). Contudo, essa estratégia está sendo revisada de uns tempos para cá.
O interesse por elétricos não diminuiu, mas há evidências concretas de que a próxima década (pelo menos) pode não ser tão eletrizante, com o perdão do trocadilho, no Brasil e no mundo. O Reino Unido, por exemplo, já estendeu a meta para banir a venda de carros novos a combustão para 2035. Nos Estados Unidos, o objetivo do governo é vender cerca de 67% de carros elétricos até 2032.
Nessa toada, algumas marcas começam a trabalhar para mostrar que carros a combustão podem combinar com sustentabilidade e redução na pegada de carbono. É o caso de Toyota, Subaru e Mazda, que anunciaram uma aliança para o desenvolvimento de novos motores a gasolina.
O objetivo das empresas é que estas novas unidades sejam compatíveis com combustíveis sintéticos neutros em carbono, como o hidrogênio (que em breve vai aparecer com mais detalhes nesse texto). Entretanto, em um período de transição, esses propulsores também vão funcionar com outros combustíveis fósseis, como gasolina e diesel.
“Os combustíveis sintéticos são alternativas aos combustíveis fósseis tradicionais e estão ganhando destaque no debate sobre a transição energética. Eles são produzidos a partir de dióxido de carbono (CO2) e hidrogênio”, disse Camilo Adas, conselheiro em Tecnologia e Transição Energética da SAE.
Aposta no mercado
Um exemplo prático dessa “nova” onda de combustíveis é o eFuel da Porsche. A fabricante alemã já produz no Chile esse combustível sintético – de forma simplificada – a partir do hidrogênio (proveniente da quebra das moléculas da água) e do CO2 presente na atmosfera. O resultado é o e-metanol, que ainda passa por diversos processos para dar origem ao eFuel.
Dessa forma, permite uma operação quase neutra em CO2 dos motores a combustão e, segundo a Porsche, é tão eficiente em termos de consumo e desempenho quanto a gasolina “normal”. Os beneficiados, aliás, não seriam só os automóveis: a alquimia ainda pode resultar em querosene e diesel limpos para serem usados em aviões e barcos, por exemplo.
Cabe reforçar que o metanol não é considerado uma gasolina sintética. Como o nome se refere, é um tipo de álcool. É feito do gás natural, mas pode ser produzido por síntese também. Suas moléculas têm um átomo de carbono e um de oxigênio para quatro de hidrogênio.
“Mas [o metanol] é muito tóxico. Por isso, é o tipo que menos é viabilizado para se tornar um combustível utilizado em grande escala”, diz Rogério Gonçalves, diretor de Combustíveis da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA).
Um dos obstáculos, no entanto, é o custo da transformação do CO2 e hidrogênio em combustível (cerca de quatro vezes maior que o do combustível fóssil). Hoje, portanto, o preço ficaria inviável para o consumidor. “Esses custos [dos combustíveis sintéticos] ainda são extremamente elevados, mas a expectativa é que fiquem mais baratos à medida em que a tecnologia evolua e novos processos sejam desenvolvidos”, complementa Gonçalves.
De acordo com a Porsche, atualmente, a fábrica em Punta Arenas (Chile) produz 130 mil litros de eFuel por ano. Até 2028, a expectativa é superar 550 milhões de litros anuais. A própria marca, no entanto, também aposta nos elétricos. O objetivo da fabricante é que, até 2030, 80% do portfólio seja de carros movidos por baterias.
A marca diz que o objetivo a longo prazo é suprir os 1,3 bilhão de carros a combustão que ainda estarão rodando ao redor mundo nas próximas décadas mesmo com o advento da eletrificação. Com restrições e legislações cada vez mais pesadas sobre motores na Europa, no entanto, o combustível sintético aparece como uma alternativa, já que tem um nível de emissão de poluentes infinitamente menor que os derivados de petróleo.
Para isso, há estudos a fim de implementar outras fábricas de combustível ao redor do planeta, em países como Estados Unidos e Austrália. O Brasil também aparece na lista por sua enormidade de fontes renováveis – e grande potencial eólico. Afinal, não adianta fazer um combustível sintético usando eletricidade vinda de fontes não renováveis.
“Existem várias rotas para a produção de combustíveis sintéticos. Rotas como pirólise ou gaseificação fazem a decomposição de biomassa para produzir gases de síntese ou líquidos. Esses produtos resultantes podem ser processados para obter os combustíveis sintéticos. Os gases de síntese (oriundos de carvão, biomassa, gás natural) também podem ser convertidos em hidrocarbonetos utilizando um processo chamado de Fischer-Tropsch e posteriormente processados em refinaria para obter derivados como gasolina, diesel e outros combustíveis”, finaliza o engenheiro da AEA.
Bicombustível vem junto
Diferente dos sintéticos, produzidos a partir de processos químicos, os biocombustíveis são criados a partir de recursos renováveis. Por isso, têm um processo de síntese mais simples. Etanol, biodiesel e biometano são alguns exemplos.
Dentre eles, o etanol é um ponto chave. Afinal, além de ser usado como uma matriz energética mais limpa do que combustíveis fósseis como a gasolina e o diesel, pode ser usado para produzir hidrogênio. Que, por sua vez, pode ser usado tanto para gerar eletricidade para o motor elétrico em células de combustível ou apenas como combustível gasoso.
A questão é que o hidrogênio praticamente não emite CO2. De acordo com Anderson Suzuki, responsável pelo Departamento de Desenvolvimento de Negócios de Hidrogênio da Hyundai, existem muitos pontos positivos para a utilização desse composto.
“O veículo movido a célula de combustível a hidrogênio também não emite nenhum gás poluente, de efeito estufa, mas sim vapor d’água. O combustível tem uma alta densidade energética, então ele também proporciona alcance maior com um único abastecimento, o que é uma vantagem em comparação com veículos elétricos [a bateria]”, comenta Suzuki.
A Hyundai, aliás, já anunciou que vai investir US$ 1,1 bilhão (cerca de R$ 5,4 bilhões) em tecnologias ligadas a carros híbridos e elétricos, bem como ao hidrogênio verde, no Brasil. O investimento serve para os próximos oito anos. Lá fora, o passo já está mais avançado. Há, por exemplo, o Hyundai Nexo, SUV médio movido a hidrogênio lançado pela marca em 2018 na Coreia do Sul.
“Ele tem uma autonomia de 650 km. Também tem a questão do reabastecimento rápido, se você comparar [um carro a hidrogênio] com um elétrico a bateria, que tem que ficar lá conectado por quatro, seis horas para você se conectar”, diz o diretor da marca.
Veículos com célula de hidrogênio como o Nexo e o Toyota Mirai funcionam assim: um catalisador combina as células de hidrogênio (H2) às de oxigênio (O) e gera eletricidade por meio de reação química. No fim, o sistema emite água (H2O) destilada, purificando o ar coletado no início. Perante os carros elétricos a bateria, a maior vantagem é o rápido abastecimento. Em vez de horas no plugue, bastam cinco minutos para encher o tanque com hidrogênio.
Mas… tem seus desafios
Os veículos a hidrogênio, inclusive, não precisam de pacotes enormes de baterias. Isso, porém, não os torna menos complexos. A célula de combustível custa caro.
Segundo a Hyundai, hoje, o custo do hidrogênio na Coreia do Sul é equivalente ao da gasolina. “São cerca de 5 a 7 dólares por quilo”, afirma Anderson Suzuki. No entanto, daqui a cinco anos, a célula de combustível terá a metade do preço.
Esta é uma conta local, já que o governo sul-coreano se comprometeu a construir 300 novos postos de abastecimento de hidrogênio no país e a Hyundai projeta um crescimento substancial da demanda. Executivos falam em uma frota de 1,5 milhão de veículos dotados dessa tecnologia em 2030.
Fato é que o hidrogênio tem complicações logísticas. Armazenar o composto em estado líquino com alta pressurização no veículo e transportá-lo para o posto de abastecimento são algumas delas. Isso porque é um produto muito inflamável.
“Eu mesmo diria que é um problema similar ao que aconteceu com os elétricos há 10 anos, que é a questão da infraestrutura. A rede de reabastecimento é um investimento caro. Onde [a tecnologia] está mais desenvolvida, como Coreia do Sul, Alemanha e Estados Unidos, você tem incentivos de governo e apoio de empresas privadas. Sem essa infraestrutura, você não teria como rodar os carros movidos a célula de combustível. Então a infraestrutura é importante”, complementa o diretor da Hyundai.
No caso do Brasil, Anderson afirma que existe uma “vocação” para usso de biomassa via etanol, que resulta no hidrogênio. Não seria o hidrogênio verde na classificação global, mas teria baixíssimo nível de carbono. A expectativa é alcançar uma margem de 1,5 dólar em um prazo de seis anos, um preço que seria bastante competitivo na América Latina.
“Existe a vantagem da produção, com a ampla existência de sol e vento e custos mais competitivos. Então, nós acreditamos que essa tecnologia estará mais viável em 2030”, completa.
Diesel não fica atrás
Agora, em demandas ainda no setor de trabalho, existem as alternativas ao diesel, como o biodiesel – feito por um processo químico chamado transesterificação. Embora seja um progresso, não é totalmente neutro, já que precisa de álcool para a reação e, consequentemente, emite mais gases poluentes.
Cabe reforçar que o Brasil é o segundo maior produtor de biodiesel no mundo, ficando atrás apenas de Estados Unidos. Por aqui, a taxa de aplicação do biodiesel no diesel subiu de 12% para 14% desde abril de 2024.
Em contrapartida, um outro composto surge com força como alternativa ao biodiesel: o HVO. É um tipo de diesel verde visto como uma solução para o setor de transportes. Este pode ser feito de diversos processos, como hidrotratamento, a partir de óleos vegetais e gorduras residuais (como óleo de cozinha) ou animais, matérias-primas abundantes no Brasil. É a mesma base do biodiesel. O que difere é forma de produção.
Já existem projetos no Senado visando a criação de programas nacionais de diesel verde, biogás, biometano e até combustível sustentável para aviação.
“Cada país tem sua peculiaridade e o Brasil desponta na produção de biocombustíveis. Etanol, biodiesel, HVO e biogás têm um futuro promissor. Somos um país em evolução, com características próprias, porém sem deixar de acompanhar as mudanças globais. O hidrogênio ainda é muito dependente da infraestrutura de armazenagem e distribuição, no entanto é dependente de uma matriz energética limpa em crescente disponibilidade no Brasil”, finaliza Rogério Gonçalves, da AEA.
Variáveis futuras
Embora não dê para cravar, é fato que a eletrificação veio para ficar e fará parte dos planos para as próximas décadas. Em conjunto, os combustíveis sintéticos, o hidrogênio e os biocombustíveis como o etanol serão essenciais para a construção de uma frota veicular menos poluente.
É claro que existem variáveis. No caso do hidrogênio, há a necessidade de melhorar e baratear processos, além do investimento na infraestrutura. No caso do etanol, existe a dependência do local e do clima. Afinal, não ainda investir no combustível em um país que não tem condição de cultivar cana ou milho para produzir o combustível e abastecer a frota.
Seja como for, fica claro que marcas e governos caminham para a utilização de biocombustíveis e combustíveis sintéticos como uma alternativa. E quanto à gasolina que conhecemos hoje? “Uma hora terá fim, mesmo que não consigamos cravar quando”, prevê Adas, da SAE Brasil. Agora, seria interessante saber quais seriam as opiniões do Dr. Brown sobre o ponto que alcançamos agora e como estaremos daqui a 60 anos…
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