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A Legitimação das Associações Mutualistas

Por Patrícia Muller 

A complexidade da sociedade contemporânea e o crescimento das necessidades sociais impuseram uma atuação estatal mais abrangente, inclusive no âmbito normativo. Do Poder Legislativo tem se exigido cada vez mais normas reguladoras de setores que, até pouco tempo atrás, não eram previstos como uma possibilidade real ou concreta. No campo dos direitos fundamentais e seu extenso catálogo previsto na Constituição Federal de 1988, a vida, a saúde e a dignidade da pessoa conflitam com questões fáticas decorrentes do avanço científico alcançado nos últimos anos.

Podemos citar como exemplo as pesquisas com células-tronco embrionárias, que esbarram em várias questões jurídicas e, inclusive, éticas e religiosas. Há uns cinquenta anos não se cogitava a possibilidade de se ter que legalizar o uso de células humanas (embrionárias) para pesquisas. Isso, pois, não se imaginava que estas pesquisas viriam ao encontro das mais impensáveis necessidades do homem, sendo de se destacar a possibilidade de regeneração ou substituição de um órgão vital, por meio da utilização das células-tronco.

Se o transplante de um órgão vital do homem já era algo bastante avançado para o entendimento humano, o que dizer da regeneração de células e até mesmo de um órgão vital a partir da multiplicação celular? A chamada Engenharia de Tecidos é caracterizada como o ramo do conhecimento capaz de, a partir do cultivo de células, construir ou restaurar tecidos e órgãos de seres humanos e animais.

No caso do Brasil, a polêmica que envolveu as pesquisas com células-tronco embrionárias, prevista na Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), encontrou amparo no Supremo Tribunal Federal (STF) que, em 2009, garantiu o manuseio das células para pesquisas científicas. O estimado Ministro Carlos Ayres Brito, em seu voto, destacou que “a Constituição Federal que garante o direito à vida, à saúde, ao planejamento familiar e à pesquisa científica e, também, o espírito de sociedade fraternal preconizado pela Constituição Federal, são bases para defender a utilização de células-tronco embrionárias na pesquisa para curar doenças”.

No mês de fevereiro do corrente ano, outra decisão inovadora foi proferida pelo STF, caracterizando evidente mudança de paradigma no seio da legislação brasileira. Os Ministros do STF autorizaram a mudança do nome da pessoa no registro civil para os transexuais e os transgêneros, sem que haja necessidade de cirurgia para alterar o sexo e independentemente de decisão judicial. A partir desta disposição, o interessado pode ir ao Registro Civil e requerer a alteração do nome para constar aquele que melhor se adequa à sua identidade de gênero.

Para o prestigiado Ministro Luís Roberto Barroso a decisão do STF escreve uma página libertadora para um dos grupos mais marginalizados e estigmatizados da sociedade brasileira. Ele afirmou que, “a causa da humanidade e o avanço do processo civilizatório é a superação dos preconceitos contra mulheres, negros, judeus, homossexuais. Hoje chegamos a um capítulo que é a proteção das pessoas transgêneros. Discriminar alguém por esta razão, rejeitando sua identidade de gênero é não aceitar uma condição inata da pessoa. É o mesmo que discriminar alguém por ser latino-americano, árabe ou norte-americano. Na vida é preciso aprender a respeitar o diferente”.

As considerações acima merecem melhor delineamento com o tema que se propõe no presente artigo. Vejamos que no primeiro exemplo citado o Poder Legislativo já havia sido normatizada a temática por meio da Lei da Biossegurança, o que foi reconhecido como plenamente aceitável pelo ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, no segundo caso, coube ao Poder Judiciário manifestar-se no sentido de reconhecer que o referido direito integra a dimensão dos princípios e direitos fundamentais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil, eis que não existia lei assegurando o direito de alterar o nome no registro civil de nascimento.

Nos dois exemplos citados, observamos que a legitimação dos direitos se dá em momento posterior à realidade trazida pela sociedade e pelos interesses dos cidadãos. No primeiro exemplo, primeiro surgiram as pesquisas científicas, depois a Lei da Biossegurança e, mesmo com a lei regulamentando a matéria, o Poder Judiciário foi chamado para decidir se a norma conflitava com a Constituição Federal, tendo o STF decidido que não havia contrariedade à Carta Fundamental e resultando na possibilidade de se continuar utilizando as células para as pesquisas em benefício do homem.

Já segundo exemplo, a reivindicação dos transexuais e transgêneros sempre existiu e, na ausência de lei específica, o STF ergueu o referido direito a partir das normas contidas no texto da Constituição Federal.

É possível ver a semelhança dos casos acima com a realidade enfrentada pelo seguimento do associativismo mutualista de benefícios desde há muito consolidado. A atividade desempenhada já existe de fato e está estruturada em todo o território nacional, eis que se noticia a existência de mais de duas mil associações espalhadas no Brasil, de norte a sul, de leste a oeste.

Há quem defenda a ideia de que as associações mutualistas de benefícios praticam seguro e, por assim se caracterizar, sua atividade estaria sujeita aos ditames do Decreto-lei 73 de 1966. No entanto, o modelo de atividade das associações não se identifica com o contrato de seguro, diante do que não poderia esta atividade ser equiparada às desempenhadas pelas seguradoras e, de igual modo, submetê-las à fiscalização da Susep (Superintendência de Seguros Privados).

TERCEIRO SETOR

Por outro lado, há evidente identidade das atividades praticadas pelas associações com aquelas previstas no art. 5° XVII e seguintes da Constituição Federal. Mas não apenas isso: a dinâmica da atividade associativa mutualista e de benefícios se reveste de todas as características daquilo que se denomina Terceiro Setor, legitimado e consolidado no ordenamento pátrio.

No Brasil, o Terceiro Setor é definido como “um setor composto pelo conjunto de organizações privadas, sem fins lucrativos, de finalidade pública ou coletiva” e, ainda, “um conjunto de organizações que podem apoiar grupos e movimentos populares de uma maneira que nem o mercado e nem o Estado são capazes. Sua particularidade constitui nesse sentido, sobretudo, a solidariedade”. Nas várias citações de Mara Leal, em monografia apresentada sobre o tema, podemos destacar que as organizações que integram o Terceiro Setor “são motores de transformação social, uma nova forma de fazer política e, para outros, um campo propício às ações do neoliberalismo, que busca repassar suas responsabilidades sociais para o campo da sociedade civil”.

No âmbito das associações mutualistas de benefícios, os elementos identificadores do Terceiro Setor estão plenamente presentes: o interesse público, a inexistência de finalidade lucrativa, o exercício de atividade que nem o Estado e o mercado são capazes de atender de acordo com as necessidades do seguimento, bem como a efetiva observância e concretização do princípio da solidariedade entre os associados.

Nesta realidade, a existência das associações mutualistas de benefícios e suas caraterísticas particulares não podem ser negadas. Soma-se a isso o fato de o Terceiro Setor já estar instituído no ordenamento brasileiro, atuando de forma legítima e crucial para diversos setores do assistencialismo social. Além de tais aspectos, a “plena liberdade de associação” está erguida no texto da Constituição Federal.

Conjugando estas premissas é de se concluir que, atualmente, cabe ao Poder Legislativo regulamentar a atividade, pois a sua legitimação já está consolidada no ordenamento pátrio. Assim, qualquer atentado normativo contra esta atividade configura afronta à Carta Fundamental que, sem dúvidas, resultará na busca da tutela do Poder Judiciário com amparo nos mais fundamentais dos direitos dos cidadãos brasileiros.

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