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Preços de carros sobem e vendas afundam: as montadoras estão sem saída

Setor produz o menor volume na história e não consegue vender o que foi fabricado; para piorar, dólar alto encareceu uma produção que já não era competitiva

 

Por Veja

 

Além de os automóveis mexerem com o sonho de grande parte das pessoas, ávidos por acelerar suas conquistas por ruas e estradas, a sua produção no Brasil, nos anos 1950, representou um marco na indústria do país. Foi durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956 -1961) que foram instaladas em São Bernardo do Campo, em São Paulo, as fábricas da Willys Overland, Mercedes Benz, Volkswangen e Ford — respectivamente na ordem de implantação. Desde então, a indústria automotiva brasileira é a menina dos olhos de muitos governantes. Inclusive, da pujança econômica das montadoras saiu líderes políticos, como ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Nos últimos anos, contudo, o setor vem sofrendo com perda de produtividade, encarecimento da produção e, se não bastasse todas as amarras que o custo-Brasil impõe às companhias, a crise da pandemia do coronavírus forçou a paralisação de todas as plantas. Nunca em mais de 60 anos se produziu tão poucos carros num único mês no país. O futuro é sombrio para o setor automotivo.

Se não bastasse a brusca queda da demanda em decorrência da diminuição da renda dos brasileiros, a expressiva alta do dólar, que fechou cotado a de 5,74 reais na sexta-feira, 8, forçou as montadoras a reajustarem os preços dos veículos para cobrir suas despesas com importações de insumos. A Volkswagen afirma que não há muito o que fazer senão repassar a variação para seus veículos. “O impacto da oscilação cambial vem obrigando a empresa a repassar parte dos custos para o preço final dos veículos”, informou, em nota enviada a VEJA. A General Motors (GM) é outra empresa que também já iniciou o movimento altista. A subsidiária da companhia americana aumentou os valores de venda de toda a linha em 4%, e com isso o Onix Joy, modelo de entrada e o mais vendido do país, passou a custar 52.150 reais. São necessários quase 50 salários mínimos para adquirir o carro mais popular do Brasil. “O real tem sido uma das moedas com pior desempenho de todos os mercados emergentes. Vimos uma desvalorização de 48% em meados de 2019 e de quase 40% desde janeiro de 2020. Isso afeta drasticamente a lucratividade da indústria e da GM. Vemos os preços como a única solução de curto prazo; anunciamos um aumento de 4% em maio, o que não tem precedentes em nosso mercado”, diz Carlos Zarlenga, presidente da GM América do Sul. “É apenas o começo, se a moeda permanecer nesses níveis sem precedentes, e acreditamos que irá continuar nesses níveis, nós continuaremos aumentando os preços significativamente, mesmo em um mercado menor. A indústria não tem espaço para perder dinheiro porque a dívida já é enorme e vai se duplicar. E, diferentemente da crença comum, a indústria no Brasil não é lucrativa.”

O momento é desolador. Ninguém crê na lucratividade do setor e tampouco que a situação será solucionada brevemente. Apesar dos reajustes dos preços praticados pelas montadoras, a tendência é que o valor praticado pelas concessionárias caia. “Esses aumentos são comuns e até mesmo frequentes, mas são somente um preço indicativo para o cliente final. O mercado trabalha com dois preços: o de montadora e o chamado “preço de boca”, que é negociado direto com as concessionárias. A tendência é de alta no preço de lista, e de baixa no preço real praticado”, diz Milad Kalume Neto, gerente de desenvolvimento de negócios da consultoria automotiva Jato Dynamics. Há ainda uma série de problemas do setor automotivo que contribuem para o excessivo valor cobrado por veículos novos no país. “Além da variação cambial, que implica na importação de peças e materiais como ferro e aço, você tem os tributos diretos que incidem diretamente no veículo e os indiretos, como os altos encargos trabalhistas, que acabam por aumentar o custo indireto da fabricação do veículo no Brasil. A infraestrutura também é precária, o transporte é substancialmente rodoviário, que por si só é o mais oneroso e deve-se somar os custos das transportadoras que enfrentam estradas de péssima qualidade. A logística no Brasil é deplorável”, explica Kalume Neto.

Devido ao seu peso histórico na indústria do país, todo governante tem muito cuidado ao lidar com as montadoras. Por tanto, sempre que uma crise pega em cheio essas empresas, diversas ações são coordenadas para tentar mitigar os impactos. Dessa vez, com uma crise tão profunda e generalizada, o setor automotivo está sendo tratado como todos os outros. Se por um lado isso impede o reforço de segmentos privilegiados da indústria nacional, por outro, empregos no setor automotivo estão entre os mais bem remunerados do país. Os industriais afirmam que estão segurando o volume de postos de trabalho — por enquanto — e utilizando todas as ferramentas disponíveis para segurar a pressão dos custos presentes. Mas reclamam da combinação explosiva que poderá ser detonada em breve. “A queda de volume brutal e um custo adicional muito alto podem quebrar o setor”, afirma Luiz Carlos Moraes, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, a Anfavea. “Isso não é privilégio do setor automotivo e vai afetar outros setores também. Nós estamos falando de quase 2 reais de valorização do dólar em relação a dezembro. É contraditório num momento de crise discutir aumento de custos, mas infelizmente não está nas nossa mãos esse controle de custo.”

Obviamente que um setor não fica em tão maus lençóis da noite para o dia. Empresas já estão claudicantes há anos e vem se mantendo no Brasil graças a benefícios fiscais, como os concedidos por estados no Nordeste para atrair Ford e Fiat na década passada. A própria Ford, como reflexo desse movimento, decidiu fechar em 2019, sua fábrica em São Bernardo do Campo — aquela mesma construída nos anos 1960 e que inaugurou a nova era industrial brasileira. Demitiu mais de 4 mil funcionários para privilegiar sua produção em Camaçari, na Bahia. A GM também ameaçou deixar de produzir carros em São Caetano do Sul, outra cidade do ABC Paulista. Existe um ponto ainda mais importante nisso tudo: há menos de dois anos foi promulgado o Programa Rota 2030, que modificou metas e obrigações das montadoras no Brasil e estabeleceu critérios novos para emissões e necessidade de investimentos. Depois do desastre do plano criado pela ex-presidente Dilma Rousseff, o Inovar-Auto, o congênere desenhado por seu sucesso, Michel Temer, foi incapaz de levar ânimo às montadoras. Afinal, o programa também elevou o custo de produção em um país que já é um dos mais caros do mundo para se fabricar um veículo. “Essa situação já era preocupante antes e agora é mais complexa ainda porque as matrizes também estão passando por dificuldades, já que todos os mercados têm quedas substanciais de volume. Se não houver retomada e essa forte crise persistir por um longo tempo, corre risco de ocorrerem fechamentos no futuro. Cada empresa sabe a sua dor e cada uma vai ter que decidir essa questão, mas a gente espera que isso não aconteça”, diz Moraes, reconhecendo que a crise do setor é antiga.

Agora, as plantas paradas em todo o país agravam uma situação que já deprimente. Em abril, apenas 1.847 veículos foram produzidos, contra 267.561 no mesmo período de 2019, uma queda de 99,3%, segundo a Anfavea. “É o pior resultado da série histórica da indústria automobilística, desde 1957”, afirma Moraes. E não foi só a produção que caiu. Com os clientes em casa e segurando o dinheiro no bolso, a venda de carros novos no Brasil, em comparação com abril de 2019, afundou 76% — o maior tombo da história. As exportações foram afetadas igualmente e despencaram quase 80% em relação a março de 2020. Dado este cenário, beira a bufonaria a discussão que surgiu em fevereiro, nos corredores do Ministério de Ciência e Tecnologia, de que Elon Musk, fundador da Tesla, poderia abrir uma fábrica no Brasil para produzir seus carros high-tech. Nada passou de uma reunião por videoconferência que o ministro Marcos Pontes teve com o ministro-conselheiro da embaixada dos EUA no Brasil, William Popp. Nem mesmo Musk estava lá e dificilmente levou à sério a proposta. O excêntrico empreendedor, inclusive, manteve seus planos para inaugurar uma planta na China. A menos que algo se faça para dar competitividade à indústria nacional em um momento tão dramático, as plantas que ainda remetem ao passado glorioso da pujança industrial poderão entrar de vez para os livros de história.

 

Foto: Germano Lüders/VEJA